sábado, 31 de março de 2012

Partir de um cais

O Porto de Leixões é uma cidade, é um labirinto, é enorme.
Os prédios são feitos de contentores e as ruas fazem-se entre eles.
Nunca imaginei a enormidade que está depois das gates de entrada.
Anda-se e anda-se e nem se vê a água.
Vi-me numa fila de trânsito rodeada por camiões.
Um camionista buzinou-me e eu baixei o vidro conforme me ordenou.
"A saída é por ali." - disse ele convencido que eu estava perdida.
Realmente ser mulher e não ter um camião TIR não dá dreito de entrada ali.
Outro ajudou-me a tirar o cartão de segurnaça.
O terceiro indicou-me o escritório.
"Mas é um contentor branco que facilmente se encontra ao seguir as setas." - afirmava ele convencido da tal facilidade.
"Ahhhh... que burra. Como não fui capaz de encontrar um contentor branco? Afinal só estão aqui uns milhares de contentores de todas as cores." - pensei eu.
O senhor no escritório foi muito simpático e até me arranjou logo uma boleia para a saída.
Depois de entrar ali só existem 2 portões de sáida: a de Matosinhos e a de Leça da Palmeira.
Preferi a de Matosinhos. Fica mesmo junto ao metro.
As zonas portuárias são, por natureza, sítios feios. Ali não.
Existe uma avenida onde de um lado passa o metro sobre um tapete verde de relva e do outro lado uma barreira de contentores vermelhos com versos brancos.
Achei tão bonito.
Aqueles pequenos versos pareciam falar comigo e compreender-me.
Pareciam explicar que aquile era um sítio de partidas e de chegadas e de tudo o que isso implica: coragem, sofrimento, aventura.
Aquelas palavras transportam-nos e fazem-nos deixar aquele porto, aqueles contentores e guindastes, todo o ferro e ferrugem.



Hoje fui investigar e descobri que são pequenos excertos da Ode Marítima de Álvaro de Campos, Engenheiro Naval.



Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão, 
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido, 
Olho e contenta-me ver, 
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
...
Os paquetes que entram de manhã na barra 
Trazem aos meus olhos consigo 
O mistério alegre e triste de quem chega e parte. 
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos 
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos. 

Todo o atracar, todo o largar de navio, 
É - sinto-o em mim como o meu sangue - 
Inconscientemente simbólico, terrivelmente 
Ameaçador de significações metafísicas 
Que perturbam em mim quem eu fui... 


Ah, todo o cais é uma saudade de pedra! 
E quando o navio larga do cais 
E se repara de repente que se abriu um espaço 
Entre o cais e o navio, 
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente, 
Uma névoa de sentimentos de tristeza 
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas 
Como a primeira janela onde a madrugada bate, 
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa 
Que fosse misteriosamente minha. 


Ah, quem sabe, quem sabe, 
Se não parti outrora, antes de mim, 
Dum cais; se não deixei, navio ao sol 
Oblíquo da madrugada, 
Uma outra espécie de porto? 
...
O mistério de cada ida e de cada chegada, 
A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade 
Deste impossível universo 
A cada hora marítima mais na própria pele sentido! 
O soluço absurdo que as nossas almas derramaram 
Sobre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe, 
Sobre as ilhas longínquas das costas deixadas passar, 
Sobre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente, 
Para o navio que se aproxima. 

Ah, a frescura das manhãs em que se chega, 
E a palidez das manhãs em que se parte, 
Quando as nossas entranhas se arrepanham 
E uma vaga sensação parecida com um medo 
- O medo ancestral de se afastar e partir, 
O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo - 
Encolhe-nos a pele e agonia-nos, 
E todo o nosso corpo angustiado sente, 
Como se fosse a nossa alma, 
Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira: 
Uma saudade a qualquer coisa, 
Uma perturbação de afeições a que vaga pátria? 
A que costa? a que navio? a que cais? 
Que se adoece em nós o pensamento, 
E só fica um grande vácuo dentro de nós, 
Uma oca saciedade de minutos marítimos, 
E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dor 
Se soubesse como sê-lo... 
...
Na minha imaginação ele está já perto e é visível 
Em toda a extensão das linhas das suas vigias. 
E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele, 
Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco 
E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado oblíquo. 
Os navios que entram a barra, 
Os navios que saem dos portos, 
Os navios que passam ao longe 
(Suponho-me vendo-os duma praia deserta) - 
Todos estes navios abstratos quase na sua ida, 
Todos estes navios assim comovem-me como se fossem outra coisa 
E não apenas navios, navios indo e vindo. 
...
E eu cismo indeterminadamente as viagens. 
Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte! 
Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!
...
Se sente pesar sobre os nervos o fato de que aquele é o maior dos oceanos 
E o mundo e o sabor das coisas tornam-se um deserto dentro de nós! 
A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico! 
...
Ah seja como for, seja por onde for, partir! 
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar. 
Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata, 
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas, 
Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais! 
Ir, ir, ir, ir de vez! 

Todo o meu sangue raiva por asas! 
Todo o meu corpo atira-se pra frente! 
Galgo pla minha imaginação fora em torrentes! 
Atropelo-me, rujo, precipito-me 
Estoiram em espuma as minhas ânsias 
E a minha carne é uma onda dando de encontro a rochedos! 
...
E fizestes tudo isso como se não fosse nada, 
Como se isso fosse natural, 
Como se a vida fosse isso, 
Como nem sequer cumprindo um destino! 
...
Quero ir convosco, quero ir convosco, 
Ao mesmo tempo com vós todos 
Pra toda a parte pr'onde fostes! 
Quero encontrar vossos perigos frente a frente, 
Sentir na minha cara os ventos que engelharam as vossa 
Cuspir dos lábios o sal dos mares que beijaram os vossos 
Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas 
Chegar como vós, enfim, a extraordinários portos! 
Fugir convosco à civilização! 
Perder convosco a noção da moral! 
Sentir mudar-se no longe a minha humanidade! 
Beber convosco em mares do Sul 
Novas selvajarias, novas balbúrdias da alma, 
Novos fogos centrais no meu vulcânico espírito! 
Ir convosco, despir de mim - ah! põe-te daqui pra fora! - 
O meu traje de civilizado, a minha brandura de ações, 
Meu medo inato das cadeias, 
Minha pacífica vida, 
A minha vida sentada, estática, regrada e revista! 
...
Parte-se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu. 
Senti demais para poder continuar a sentir. 
Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim. 
Decresce sensivelmente a velocidade do volante. 
Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos. 
Dentro de mim há um só vácuo, um deserto, um mar noturno. 
E logo que sinto que há um mar noturno dentro de mim, 
Sabe dos longes dele, nasce do seu silêncio, 
Outra vez, outra vez o vasto grito antiquíssimo. 
De repente, como um relâmpago de som, que não faz barulho mas ternura, 

Subitamente abrangendo todo o horizonte marítimo 
Úmido e sombrio marulho humano noturno, 
Voz de sereia longínqua chorando, chamando, 
Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos, 
E à tona dele, como algas, bóiam meus sonhos desfeitos... 
...
Ah, e as viagens, as viagens de recreio, e as outras, 
As viagens por mar, onde todos somos companheiros dos outros 
Duma maneira especial, como se um mistério marítimo 
Nos aproximasse as almas e nos tornasse um momento 
Patriotas transitórios duma mesma pátria incerta, 
Eternamente deslocando-se sobre a imensidade das água,, 
Grandes hotéis do Infinito, oh transatlânticos meus! 


Com o cosmopolitismo perfeito e total de nunca pararem num ponto 
E conterem todas as espécies de trajes, de caras, de raças! 


As viagens, os viajantes - tantas espécies deles! 
Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente! 
Tanto destino diverso que se pode dar à vida, 
À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma! 
Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas 
E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente. 
A fraternidade afinal não é uma idéia revolucionária. 
É uma coisa que a gente aprende pela vida fora, onde tem que tolerar tudo, 
E passa a achar graça ao que tem que tolerar, 
E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou! 


Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado 
Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burgueses. 
Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes! 
A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano. 
Pobre gente! pobre gente toda a gente! 


Despeço-me desta hora no corpo deste outro navio 
Que vai agora saindo.
...
Ele faz o seu dever. Assim façamos nós o nosso. Bela vida! 
Boa viagem! Boa viagem! 
Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o favor 
De levar contigo a febre e a tristeza dos meus sonhos, 
E restituir-me à vida para olhar para ti e te ver passar. 
Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto... 
...
Passa, lento vapor, passa e não fiques... 
Passa de mim, passa da minha vista, 
Vai-te de dentro do meu coração, 
Perde-te no Longe, no Longe, bruma de Deus, 
Perde-te, segue o teu destino e deixa-me... 
Eu quem sou para que chore e interrogue? 
Eu quem sou para que te fale e te ame? 
Eu quem sou para que me perturbe ver-te? 
Larga do cais, cresce o sol, ergue-se ouro, 
Luzem os telhados dos edifícios do cais, 
Todo o lado de cá da cidade brilha... 
Parte, deixa-me, torna-te 
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido, 
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto 
Depois ponto vago no horizonte (ó minha angústia!), 
Ponto cada vez mais vago no horizonte.... 
Nada depois, e só eu e a minha tristeza, 
E a grande cidade agora cheia de sol 
E a hora real e nua como um cais já sem navios, 
E o giro lento do guindaste que, como um compasso que gira, 
Traça um semicírculo de não sei que emoção 
No silêncio comovido da minh'alma... 

Ode Marítima
Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa


0 comentários:

Enviar um comentário

 
Copyright 2010 Janelas do Imaginário. Powered by Blogger
Blogger Templates created by DeluxeTemplates.net
Wordpress by Wpthemescreator
Blogger Showcase